Cinquenta zebras entram no Estádio Nacional, em Oeiras, e Maria começa a chorar. Estamos em Abril de 2007, a Escolinha de Rugby da Galiza existe desde Setembro de 2006. "Mas só com meia dúzia de bolas, muita vontade e mais nada", garante a directora Maria Gaivão. As crianças são de bairros sociais de Cascais, sobretudo do Bairro do Fim do Mundo, e receberam naquele dia o seu primeiro equipamento durante um convívio com equipas seniores promovido pela Associação de Rugby do Sul. Degrau a degrau, descem orgulhosas as escadas até ao relvado. Exibem as chuteiras, as meias, as camisas e os calções riscados de preto e branco que lhes oferecem a alcunha. "Foi muito bonito. Ainda hoje me comovo." Contar a história desta escola é lembrar a vida de Maria Gaivão. Aos 56 anos, senta-se numa sala de paredes azuis e cheia de crianças no ATL da Galiza (ao qual pertence a Escolinha). "Aos 27, grávida da primeira filha, vim abrir o ATL da Santa Casa da Misericórdia de Cascais." Nesse dia a sua vida partiu-se em duas partes. O antes e o depois do Fim do Mundo. Foi em 1983.
"Nessa altura viviam todos em barracas", diz, estendendo a mão para as crianças à sua volta. "Era muito pior do que hoje. Não tinham cuidados de saúde, nem iam à escola." Consertada a escola - "Paupérrima. Foram os pais que ajudaram a pô-la bonitinha." - chegou o dia de abrir as portas a quase 70 crianças. "Miúdos carregadinhos de energia, mas que não conheciam regras. Chegavam cá crianças com fome. Muitos deles acabavam de regressar dos PALOP, havia várias famílias ciganas. Uma multiculturalidade riquíssima que se notou desde logo. Tínhamos de agarrar essas diferenças, juntá-las e construir um projecto."
No momento em que Maria lembra estes primeiros dias, entra um homem na sala. "Olha, é o Zé Luís, um dos meus primeiros alunos. É o pai do Alvarinho, o miúdo que está ali", esclarece Maria. "É o nosso secretário voluntário. Trata de tudo o que são seguros, exames médicos, fala com as famílias." O ATL tem 13 funcionários, mas na Escolinha são todos voluntários. Incluindo os 12 treinadores.
Nos primeiros anos, experimentaram vários desportos: futebol, basquetebol, natação, ténis. Em 2006, escolheram o râguebi. "Foi uma opção consciente. É um jogo de equipa e de contacto físico. Além disso, ensina uma série de coisas que podem ser úteis. A questão do auto--controlo, de perceber as diferentes posições. Eles placam, são placados, avançam, recuam, sabem que têm de cumprir regras. Tudo isso é importante nos jogos, nos treinos, mas sobretudo na rua, quando são chamados para maus caminhos. A força de pertencer a uma equipa integra estas crianças, fá-las sentir necessárias."
A escola trabalha num sistema de compensações. "Vão todos aos convívios que fazemos?", pergunta a directora a três meninos. A resposta vem pronta pela boca do Alvarinho, o filho do secretário. "Não. Só os convocados pelo treinador." Maria insiste: "E o que é preciso para ser convocado?" Responde um coro de vozes: "Ter atitude, ir aos treinos, chegar a horas, cumprir tudo o que pedem e não arranjar conflitos." No mesmo dia em que surgia a Escolinha, nascia a escola de râguebi do colégio de St. Julian, em Cascais. Fizeram-se irmãs desde o inicio: lado a lado, o elitista colégio privado que ensina filhos de embaixadores e a instituição que apoia os filhos dos bairros sociais do concelho.
O fim das barracas
Os habitantes do bairro foram todos realojados pela Câmara Municipal de Cascais. A antiga cidade de plástico e cartão foi rasgada aos pedaços e distribuída pelos bairros de realojamento da Aldroana, do Alcoitão e de São Domingos de Rana.
As nacionalidades também se multiplicaram. Neste momento, existem crianças de 11 países. É uma autêntica Babel no Fim do Mundo. Tobias é romeno, tem 13 anos e é capitão de sub-14. "Cheguei com os meus pais a Portugal há sete anos", conta num português perfeito. Sente-se português, mas não se consegue esquecer do melhor momento que viveu. "Um dia fomos ver um jogo entre Portugal e a Roménia. No final, levaram--me ao balneário da Roménia e o capitão disse-me para continuar a treinar, que um dia poderia vir a jogar pela selecção." As 70 crianças do ATL transformaram-se em mais de 100. Desta centena, quase todos estão inscritos na Escolinha. "Sessenta estão federados; outros 20 vêm a uns treinos, fazem algumas actividades mas ainda não estão fidelizados. Só os federamos quando sentimos que estão comprometidos." A Escolinha nunca esteve fechada à comunidade. Primeiro, uma criança de classe média inscreveu-se, depois três, quatro. Este ano, foram dez. "E aconteceu alguma coisa má com o Pedrinho, o Francisco, o Tomás ou o Zé Maria?", inquire Maria sobre os meninos de classe média que foram seus colegas, mas já conhecendo de cor a resposta dos meninos. "Não." Para Maria, o objectivo é alargar. "É preciso quebrar o tabu de que a Escolinha representa um bairro problemático. Somos apenas uma equipa que, com enorme esforço, se afirma e ganha o seu espaço." Porque para estas crianças é apenas isso que ela é - uma escola onde aprendem a jogar râguebi.
E aprendem desde pequeninos. A escola criou a categoria dos megabambis, meninos com menos de cinco anos, como o irmão do Tobias que a Maria tem ao colo. "A primeira vez que jogaram foi hilariante. Entram na equipa de sub-8, os treinadores ficam por trás, a agarrar--lhes a mão, a protegê-los. Quando tinham de marcar ensaio, marcavam contra si [risos]. Todos batíamos palmas. Os nossos meninos correm muito, chamamos--lhes os gazelas." Continuando no campo das metáforas animais, existe uma especial. Os Lobos, a selecção nacional.
"Há uma grande promiscuidade com a selecção", ri-se Maria. "Já vieram cá algumas vezes, o próprio Tomaz Morais, o seleccionador, é um grande amigo." Um ano depois de a escola surgir, em 2007, os Lobos foram ao Mundial em França. "Não temos SportTV, mas íamos ver o hino ao café do senhor Quim", conta divertido o pequenino Jorge, que aos dez anos já é vice-capitão dos sub-12. "Depois vínhamos embora. Vimos os jogos gravados, mas já fomos ver o Portugal-Espanha, o Portugal-Alemanha, o Portugal-Roménia..." O ano passado fizeram mais de quatro mil quilómetros.
só falta o Relvado Ainda não têm campo relvado onde possam treinar todos os dias. Durante a semana, praticam no campo de cimento da vizinha Agregação Desportiva da Costa do Sol. Só aos sábados é que visitam um campo relvado alugado pela câmara.
As placagens são repetidas numa caixa de areia porque o piso de cimento magoa. Ainda assim, são o movimento preferido de Cândida, de 15 anos e uma das 12 meninas da equipa. "São grandes jogadoras, melhores do que muitos rapazes", garante o Alvarinho. O nome de guerra de Cândida é massa óssea: "Porque sou magrinha mas placo com muita força", explica.
"Sem equipa não conseguimos conquistar nada. No bairro há problemas, lutas e tudo, por isso sinto-me bem é aqui. Sinto-me melhor." Jorge é o autor da frase, mas ela é repetida por todos nesta pequena casa colorida do Fim do Mundo. Jorge quer ser designer - "para desenhar o novo logótipo da Escolinha" - e mostra de imediato o seu talento. Agarra numa caneta e desenha uma bola de râguebi grande, uma média, e uma pequena. "Uma por cada escalão." Depois, compõe o desenho com uma linha curva e dois círculos em cada uma delas. "São três caras a rir muito."
Fonte: I-Online
2 mêlées:
É de honrar e respeitar o grande trabalho que a Galiza faz, utilizando o rugby como veiculo de integração na sociedade de pessoas mais carenciadas. Pelo grande trabalho merecem toda a ajuda e todos os louvores.
Sem dúvida!
Nada melhor que o rugby para fazer passar os valores da vida, a cooperação, o respeito, o "ser para os outros"
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